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Dom Quixote seria cancelado hoje?

Coluna publicada no dia 19/06/2025

O clássico dos clássicos. Um dos livros mais vendidos da história, inclusive, de acordo com alguns cálculos, o mais vendido depois da Bíblia.
Escrito em duas partes (1605–1615), Dom Quixote é realmente monumental e conta as desventuras do heroico e louco Cavaleiro da Triste Figura.
Para termos uma ideia da importância dessa obra, em 1915 foi erguido um monumento na Plaza de España, em Madrid, contendo estátuas não só do autor Miguel de Cervantes, mas também dos personagens Dom Quixote, Sancho Pança e Dulcinéia de Toboso. (Dica para a prefeitura do Rio de Janeiro: uma estátua de Bentinho e de Capitu.)

Com mais de 50 adaptações para o cinema, Dom Quixote é considerado por muitos o fundador do romance ocidental. Acabei de ler a primeira parte do livro e pensei que esta seria uma boa conversa. Contudo, a loucura do nosso personagem, imaginando viver num mundo que não existe mais e dizendo coisas num palavreado que outros não entendem, são questões que não sei o quanto se encaixam na nossa política atual.

No livro, Dom Quixote é um homem de muita cultura e que também leu muito as histórias de cavalaria – algo como os nossos gibis ou filmes de velho oeste – e lá por umas tantas ele acredita que deve ser também um cavaleiro andante. Deve sair de casa em busca de aventuras e reparar as injustiças pelo mundo. No retorno, o companheiro Sancho Pança as resume para a esposa: “De cem que se topam, noventa e nove saem às avessas”. Só para entender a que Sancho se refere, vamos descrever algumas:

  • Além da clássica batalha com o moinho de vento, que obviamente termina mal, em determinado momento Dom Quixote vê um rebanho de ovelhas e insiste com Sancho que são exércitos inimigos em marcha. Ataca os pobres animais e é apedrejado pelos pastores.
  • Ele acredita que um homem traz consigo o "elmo de Mambrino" (um artefato mágico da lenda carolíngia. Lembrem-se: ele é muito culto). Desafia o próximo para um duelo e depois usa o objeto como capacete, que na verdade, é um balde de barbeiro.
  • Encontra prisioneiros sendo levados a galés (aquelas mesmas que 250 anos depois o Jean Valjean d’Os Miseráveis também irá enfrentar) e, achando-os vítimas injustiçadas, liberta-os. Resultado: leva uma surra e os próprios presos zombam dele depois.

Dom Quixote é um idealista honrado, que não perde oportunidade de listar as leis da cavalaria andante, o que por vezes contrasta com o tom satírico do narrador da história, visto que este insiste em descrever os documentos e relatos que a corroborariam. Enfim, para quem gosta de valentia, poemas, duelos e donzelas: um prato cheio.

          Era costume da época que poetas escrevessem versos a serem colocados no início da obra. O benévolo leitor tem então de perdoar Cervantes logo no início, pois este deixa claro que não saiu à cata de “pessoas que não conheciam tão bem seu personagem” e sim, escreveu todos os poemas com pseudônimos. Se perdoa Cervantes, há de perdoar também a este reles colunista que não conseguiu até agora fazer uma ligação plausível entre o livro e uma conversa sobre política.

Hum... Escolheremos então o momento da queima dos livros. As pessoas que vivem com Dom Quixote convencem-se de que a loucura dele advém de ter lido muito e resolvem queimar os livros. Ele tem muitos, e a descrição de cada um sendo atirado ao pátio é um ponto alto da história. Inevitável pensar que hoje podemos deixar bibliotecas abandonadas ou mesmo queimá-las todas sem que as pessoas reclamem disso. Aos poucos loucos que reclamarem, é só lembrá-los de que estão vivendo em outra época, estão deslocados e de que suas palavras não são mais entendidas.

Hoje, o conhecimento está na palma da mão, e pouco importa se nos aproveitamos dele ou não. Sem confrontar a loucura de Dom Quixote, algumas pessoas conseguem convencê-lo a voltar para casa e vão cuidar para que não fuja mais. Bom saber que temos a nosso favor hoje também essas pessoas.

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